quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Cora I

um gostinho do 1 capitulo (rascunho) de "ás 5 e meia" (título super provisorio)


Ela acordou ás 5:30 da manhã, mas não se levantou. Ficou deitada na cama, atônita, quieta, olhando para o teto, com sua velha enxaqueca crônica, acentuada pela noite curta e desvairada, olhos entreabertos. Observou todo o quarto na penumbra, fétido, sujo, desmazelado, e os indesejáveis raios de luz de um novo dia, desagradável desde o início.
E desse jeito ficou, enquanto a luz continuava a se intensificar, penetrando as cortinas empoeiradas, formando as sombras distorcidas das garrafas de cerveja e cinzeiros nas paredes infiltradas. Checa o relógio, que catou embaixo da cama, outra vez: 6:15 da manhã. Levanta-se finalmente, e sente uma câimbra atrás dos joelhos, fica ligeiramente tonta e pensa: “merda!”. Vê então na vertical, a desordem instalada em seu cubículo: as botas estilleto cor de vinho arremessadas de qualquer jeito perto do puf coberto de roupas e outras coisas, os jeans 518 surrados e discretamente sujos espalhados pelo chão, o sutien cobrindo o pequeno abajur em cima do criado mudo de três gavetas.
Vestida apenas com uma calcinha bege e uma regata preta justa, parcialmente translúcida, abre as cortinas e a janela para deixar entrar um ar novo naquele junkie-flat. Acende um cigarro, o ultimo de sua carteira camel, e fica a observar os carros que vagarosamente começam a transitar pela avenida.
Abre seu armário e olha-se no espelho, vê aquele espectro, um esqueleto pálido, ossudo, um rosto esquálido com olhos foscos e olheiras roxas e profundas, e os longos e desgrenhados cabelos negros desorganizadamente emoldurando os contornos de sua face. O reflexo de uma existência surtada e distraída, centrada na perdição autodestrutiva.
Escolhe então uma roupa para aquele cinzento e fresco dia de outono: uma calça jeans com um cinto preto de ilhós, uma blusa branca com um colete justo de lã xadrez por cima, um casaco negro de cinco botões grandes e envernizados de comprimento médio, até os joelhos. Abre a gaveta dos sapatos e escolhe um all star preto, cujas partes brancas já haviam se tornado amareladas. Joga o outfit na cama desarrumada, os lençóis púrpura amassados, os enormes travesseiros espalhados entre cama e chão.
Abre a porta do quarto, fechando-a logo atrás de si, e nela pode-se ler, escrito do topo até o rodapé: “Good girls and boys go to heaven. Bad girls and boys go into my room”. Transita ainda cambaleante em plena ressaca até a sala dividida por um balcão, cujo outro lado compõe uma pequena cozinha, com um fogão elétrico de duas bocas, um microondas, uma geladeira entupida de garrafas e latas de Heineken e restos de comida chinesa “china in Box” e chicken tika-massala já em decomposição. Tira de um pote de porcelana verde berrante o pó de café e coloca-o na cafeteira walita preta, juntamente com a água, e continua a vagar pela pequena sala, repleta de pufes pretos e brancos, rodeando uma mesa circular de vidro, os bancos altos de inox com suas perna finas próximas ao balcão, que tem acima um armário que assume orgulhosamente a posição de bar, ocupando o hot spot da casa: incontáveis garrafas de uísque, vinho, vodka, bacardi, campari, dentre outras.
Entra no banheiro paralelo a seu quarto, de azulejos azuis claros ligeiramente partidos nas extremidades superiores, caminha até a pia, postando-se sobre ela e encarando se reflexo apático e degradado no espelho do armário. Abre a torneira, bebe um gole d’água, lava o rosto, boceja e sente-se então enjoada: “Mais um dia pós-bebedeira. Agradável” pensa sarcasticamente. Dirige-se então para a latrina, abre o tampo e repete a ação já habitual: o vômito de um estômago vazio e alcoolizado, aquela bile amarela com seu odor forte.
Feito o serviço sujo, se despe e entra numa ducha extremamente gelada, lavando os cabelos impregnados de nicotina, alcatrão, suor e sabe-se mais p quê. Envolve-se, batendo o queixo, no seu felpudo roupa de estampa de pele de tigre, presente de um amigo de senso de humor ridículo e péssimo gosto; era essa pelo menos a sua explicação para uma coisa tão horrível ter-lhe sido dada, “Dane-se, é útil pelo menos”. Vai até a pia escovar os dentes e sente seu hálito de álcool misturado com seu golfo. Penteia a cabeleira e a seca, jogando a franja picotada a navalha na frente do rosto, encobrindo parcialmente os olhos obtusos de cor indefinida.
Volta para o quarto, ainda enfiada no roupão, abre a gaveta de lingerie e tira uma calcinha e um sutien pretos. Veste-se e olha o relógio prateado e preto, com os ponteiros marcando 7:20; “Puta que pariu! Atrasada...de novo! Ah, foda-se”. A essa altura a cafeteira já borbulhava, ela sai então correndo do quarto, pega seu mug de porcelana preta com letras vermelhas que dizem “a cup of coffee after a shag” com capacidade para 450 ml. Entorna em grandes e poucos goles a fervente porção de cafeína matinal, a primeira “ina” do dia. Sai então, apanhando a grande bolsa preta adidas e bate estrondosamente a porta.
Anda apressadamente pelo corredor, vasculhando pela bolsa os cigarros, o dinheiro para o metrô e seu i-pod. Pára então em frente ao elevador e dá de cara com dona Clarissa Boltov, uma imigrante russa de uns sessenta anos, que mora em um dos cinco apartamentos do oitavo andar do Edifício numero 45 daqueles diversos blocos residenciais “Ah não, a velha, é demais para o mesmo dia, e só estou acordada há duas horas”. Nesse instante acha sue i-pod e aperta play na musica “mile end” do Pulp.
-Bom dia, Cora –disse dona Clarissa com seu sotaque russo carregado, em um tom mesclado de desdém e uma hipócrita doçura.
-‘Dia, senhora Boltov –respondeu Cora friamente. “Será que a velha não viu meus headphones e não percebeu que não quero ser incomodada?”.
-Ouvi a hora que você chegou ontem. Um barulho terrível, sua voz e muitas outras. Por acaso a festa estendeu-se em sua casa? –indagou a velha gorducha, fitando-a com seus gigantes olhos, circulados por pés de galinha, um sorriso leporino que deixava transparecer por sua fina boca, provocando rugas em seus pômulos salientes. Ela era baixinha e tinha longos cabelos grisalhos trançados em coque, que pintava com as mais demodês rinsagens coloridas: azuis, rosas, lilás tec.
-Honestamente, não me lembro sra. Boltov. E não é de sua conta se estendi ou não e...-
-Ora! É claro que é de minha conta! Eu, uma velha, tenho sono leve e preciso de descanso!
-Desculpe-me então –seu celular toca, “ah, só me faltava essa!” –Senhora Boltov o elevador chegou, a senhora vem ou não?-perguntou impaciente.
-Mas é claro que não! Não vê que estou de trajes de dormir e pantufas? Desejava apenas falar-lhe.
-Ah senhora Boltov, sinceramente: vá a merda. – e entrou no elevador, sem poder conter o contentamento de ver o rosto da velha contrair-se em raiva.
Acha então sua carteira de cigarros. Vazia. Irrita-se. Mais essa agora. Checa então o celular: o escritório “Vão ter de esperar, não tem sinal no elevador”. Pára no quinto andar. Checa o relógio: 8:00 em ponto. Entram algumas crianças de uniforme do colégio católico, todas ingênuas e animadas para mais um dia de aula onde conhecimentos pré-prontos e inúteis lhe serão empurrados garganta abaixo, ao lado de sua mãe, uma dona de casa exemplar, vestida comportadamente, de silhueta roliça, cabelos cacheados loiros na altura da clavículas, olhos verdes e pequenos, por volta dos vinte e nove anos. Olha torto para Cora, que a ignora. Mais uma parada. Terceiro andar; relógio 8:03. Entra então uma linda mulher negra, com uma cabeleira black power, lábios grosso, olhos cobertos por um ray ban, usando grandes brincos exóticos, vestida de jeans, casaco bege curto de capuz com peles nas extremidades, uma grande bolsa caramelo a tiracolo e sapatilhas brancas de bico arredondado.
-Hey, hey Cora –disse num sorriso, com sua voz rouca de cantora de soul.
-Hey Zadie. Como tá?
-Acabada!!! Que noite ontem, não? E você como andas?
-Nem me diga, se eu me lembrasse de tudo! –exclama numa risada cansada –Fazer o que agora?
-Ah, realmente! Bem, vou no estúdio gravar umas músicas com o novo baixista –disse dirigindo um olhar malicioso para Cora, que entendeu e pensou: “não é só música o que eles vão fazer” –E depois o velho job. I’m the dear catastrophe waitress. O lugar é fantástico, bonito, mas não consigo mais ouvir “Brownie Zadie traga isso, traga aquilo”. Simplesmente não agüento mais. Mas é essa a vida de artista em Londres antes de dar certo.E você?
-Trabalho. A redação me espera para uma reunião, ver umas criticas, e depois ainda tenho meu outro emprego, na agencia de publicidade, estamos assumindo uma campanha para a nova fragrância da Lacoste, minha primeira participação em um contrato expressivo. Haja criatividade. Ai, minha cabeça.
-A minha também. Martelando.
Enquanto isso, a exemplar mãe olha incrédula para aquelas duas mulheres, e uma parte dela as repudia por suas vidas desregradas e selvagens, e a outra as inveja por sua aparente independência e desapego dos padrões comportamentais.
O elevador chega ao térreo. 8:05. “Finalmente”.
-Até mais Zadie. Nos encontramos mais tarde no seu trabalho para a primeira pint da noite?
-Eu te ligo mais tarde Cora! Vamos ver como as coisas vão desenvolver no estúdio. Até mais!
-Hum...Ok –diz cora piscando para Zadie.
Fecha-se então de novo em introspecção e veste sua mascara de mau-humor. Seu sorriso não é para qualquer um. Pega então sue celular preto, ultra-slim, e liga para a redação:
-Cora Birmigham! Onde você está? –pergunta impaciente uma voz masculina grave, jovem e sexy.
“Ah, se não fosse tão chato. Mas calado deve dar para o gasto”.

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